Contarás de Abril, aos meus filhos, que os meus olhos ardidos, urbanos, ficaram cheios
de um ofício de dizer coisas singelas, humildes: como amor, liberdade. Contarás de Abril os
idos e os que voltaram, os que ficaram e ficam. Contarás de Abril pequenas pilhas de palavras,
armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas: e os braços
que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos um nome, um número, uma
flor: e os balaios sem reticências de mágoas, cheios de trissos de aves, de pássaros remotos de
que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na
nossa terra já não apodrecem as raízes e que já não adiamos o coração; que já não nos dói a
velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e que já não perdemos a infância e que nascem crianças insubmissas e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho
reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o lipido grito, a forma
inconsútil, o vermelhor e a brisa, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o
caminhar, os restos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil
sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplandecente varar dos dias, a feira alvoroçada das horas. Contarás de Abril as mãos dadas.
Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Baptista-Bastos, in O Diário, 25-4-90.
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